terça-feira, 9 de julho de 2013

A origem da desigualdade social segundo Rousseau.

A desigualdade segundo Rousseau
Eu concebo na espécie humana dois tipos de desigualdade: uma, que chamo natural ou física, porque foi estabelecida pela nature­za, e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças corporais e das qualidades do espírito ou da alma; outra, a que se pode chamar de desigualdade moral ou política, pois que depende de uma espécie de convenção e foi estabelecida, ou ao menos autorizada, pelo consentimento dos homens. Consiste esta nos diferentes privilégios desfrutados por alguns em prejuízo dos demais, como o de serem mais ricos, mais respeitados, mais poderosos que estes, ou mesmo mais obedecidos.
Não há por que perguntar qual é a fonte da desigualdade natural, já que a resposta se encontra enunciada na simples definição do termo. Ainda menos se pode procurar qualquer ligação essencial entre as duas desigualdades, porque seria indagar, em outros termos, se os que dirigem valem necessariamente mais que aqueles que obedecem, e se a força do corpo ou do espírito, a sabedoria ou a virtude, são sempre encontradas nos mesmos indivíduos na proporção do poder ou da riqueza [ .. .].
O primeiro que, cercando um terreno, se lembrou de dizer: "Isto me pertence", e encontrou criaturas suficientemente simples para acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, retirando as estacas ou entulhando o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: "Guardai-vos de escutar esse impostor! Estais perdidos se vos esqueceis de que os frutos a todos pertencem e de que terra não é de ninguém!".
Porém, é por demais evidente que, àquela altura, as coisas já tinham chegado a ponto de não poderem mais durar como duravam: por­ que essa ideia de propriedade, dependendo de um sem-número de ideias anteriores, que não puderam nascer senão sucessivamente, não se formou de repente no espírito humano. Foi preciso conseguir muitos progressos, adquirir muita indústria e muitas luzes, transmiti-los e aumentá-los, antes de se chegar ao fim e se tornar natural. Retomemos, pois, as coisas de mais longe e tratemos de reunir sob um único ponto de vista essa lenta sucessão de acontecimentos e conhecimento na sua ordem mais natural.
O primeiro sentimento do homem foi o da sua existência; o primeiro cuidado, o da sua conservação. Os produtos da terra lhe forneciam todos os auxílios necessários; o instinto o levou a servir-se deles. A fome e outros apetites fizeram-no experimentar, al­ternadamente, diversas maneiras de existir, e houve um apetite que o convidou a perpetuar a própria espécie [ ... ].
Tal foi a condição do homem no começo; tal foi a vida de um animal, de início limitado às puras sensações, que aproveitava apenas os dons que a Natureza lhe oferecia, longe de sonhar em extrair-lhe algo. Todavia, cedo se apresentaram dificuldades e foi preciso aprender a vencê-las: a altura das árvores que o impedia de alcançar-lhe os frutos, a concorrência dos animais que deles buscavam nutrir-se, a ferocidade dos que pretendiam sua própria vida. Tudo isso o obrigava a exercitar o corpo; foi necessário fazer-se ágil, rápido na corrida, vigoroso no combate. [ ... ]
Contudo, é preciso assinalar que, uma vez começada a sociedade, as relações já estabelecidas entre os homens exigiam deles qualidades diferentes das que eles possuíam de sua constituição primitiva; que, começando a moralida­de a introduzir-se nas ações humanas, e sendo cada qual, antes das leis, o único juiz e vingador das ofensas recebidas, a bondade conveniente ao estado natural puro não mais convinha à nascente sociedade; que se fazia preciso que as punições se tornassem mais severas, à medida que as oportunidades de ofender aumentavam de frequência; e que, devido ao terror da vingança, se fazia necessário o freio das leis.
Assim, embora os homens tivessem se tornado menos tolerantes e a piedade natural tivesse sofrido alguma alteração, esse período do desenvolvimento das faculdades huma­nas, sustentando um justo meio-termo entre a indolência do estado primitivo e a petulan­te atividade de nosso amor-próprio, deve ter sido a época mais feliz e mais durável.
Enquanto os homens se contentaram com suas cabanas rústicas, enquanto se limita­ram a costurar as vestes de pele com espinhos, a adornar-se de penas e conchas marinhas, a pintar o corpo com tintas de diversas cores, a aperfeiçoar e embelezar os arcos e as flechas, a talhar, com a ajuda de pedras cortantes, algumas canoas de pescadores ou alguns grosseiros instrumentos musicais [ ... ], viveram livres, sãos, bons e felizes, tanto quanto o podiam ser por sua natureza, e continuaram a desfrutar entre si de um comércio independente.
Mas, desde o instante em que um ho­mem teve precisão e da ajuda de outrem, desde que percebeu ser conveniente para um só ter alimentos para dois, a igualdade desapareceu, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas se mudaram em campos risonhos que passaram a ser regados com o suor dos homens, e nos quais logo se viu a escravidão e se viu a misé­ ria germinar e crescer com as colheitas.
Adaptado de, ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
Pense e responda
I
1.   Em que consistem as duas desigualdades entre os seres humanos para Rousseau?
2.    Segundo Rousseau, como viviam os seres humanos antes de surgirem as desigualdades sociais?

3.   De que forma teve início, de acordo com Rousseau, o processo que instalou as desigualdades sociais entre os seres humanos? 

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