A desigualdade segundo Rousseau
Eu concebo na espécie humana dois tipos de
desigualdade: uma, que chamo natural ou física, porque foi estabelecida pela
natureza, e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças
corporais e das qualidades do espírito ou da alma; outra, a que se pode chamar
de desigualdade moral ou política, pois que depende de uma espécie de convenção
e foi estabelecida, ou ao menos autorizada, pelo consentimento dos homens.
Consiste esta nos diferentes privilégios desfrutados por alguns em prejuízo dos
demais, como o de serem mais ricos, mais respeitados, mais poderosos que estes,
ou mesmo mais obedecidos.
Não há por que perguntar qual é a fonte da
desigualdade natural, já que a resposta se encontra enunciada na simples definição
do termo. Ainda menos se pode procurar qualquer ligação essencial entre as duas
desigualdades, porque seria indagar, em outros termos, se os que dirigem valem
necessariamente mais que aqueles que obedecem, e se a força do corpo ou do
espírito, a sabedoria ou a virtude, são sempre encontradas nos mesmos
indivíduos na proporção do poder ou da riqueza [ .. .].
O primeiro
que, cercando um terreno, se lembrou de dizer: "Isto me pertence", e
encontrou criaturas suficientemente simples para acreditar, foi o verdadeiro
fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassinatos, misérias e
horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, retirando as estacas ou
entulhando o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: "Guardai-vos de
escutar esse impostor! Estais perdidos se vos esqueceis de que os frutos a
todos pertencem e de que terra não é de ninguém!".
Porém, é por demais evidente que, àquela altura, as
coisas já tinham chegado a ponto de não poderem mais durar como duravam: por
que essa ideia de propriedade, dependendo de um sem-número de ideias
anteriores, que não puderam nascer senão sucessivamente, não se formou de
repente no espírito humano. Foi preciso conseguir muitos progressos, adquirir
muita indústria e muitas luzes, transmiti-los e aumentá-los, antes de se chegar
ao fim e se tornar natural. Retomemos, pois, as coisas de mais longe e tratemos
de reunir sob um único ponto de vista essa lenta sucessão de acontecimentos e
conhecimento na sua ordem mais natural.
O primeiro
sentimento do homem foi o da sua existência; o primeiro cuidado, o da sua
conservação. Os produtos da terra lhe forneciam todos os auxílios necessários;
o instinto o levou a servir-se deles. A fome e outros apetites fizeram-no
experimentar, alternadamente, diversas maneiras de existir, e houve um apetite
que o convidou a perpetuar a própria espécie [ ... ].
Tal foi a
condição do homem no começo; tal foi a vida de um animal, de início limitado às
puras sensações, que aproveitava apenas os dons que a Natureza lhe oferecia,
longe de sonhar em extrair-lhe algo. Todavia, cedo se apresentaram dificuldades
e foi preciso aprender a vencê-las: a altura das árvores que o impedia de
alcançar-lhe os frutos, a concorrência dos animais que deles buscavam
nutrir-se, a ferocidade dos que pretendiam sua própria vida. Tudo isso o
obrigava a exercitar o corpo; foi necessário fazer-se ágil, rápido na corrida,
vigoroso no combate. [ ... ]
Contudo, é preciso assinalar que, uma vez começada a
sociedade, as relações já estabelecidas entre os homens exigiam deles
qualidades diferentes das que eles possuíam de sua constituição primitiva; que,
começando a moralidade a introduzir-se nas ações humanas, e sendo cada qual,
antes das leis, o único juiz e vingador das ofensas recebidas, a bondade
conveniente ao estado natural puro não mais convinha à nascente sociedade; que
se fazia preciso que as punições se tornassem mais severas, à medida que as
oportunidades de ofender aumentavam de frequência; e que, devido ao terror da
vingança, se fazia necessário o freio das leis.
Assim, embora os homens tivessem se tornado menos
tolerantes e a piedade natural tivesse sofrido alguma alteração, esse período
do desenvolvimento das faculdades humanas, sustentando um justo meio-termo
entre a indolência do estado primitivo e a petulante atividade de nosso
amor-próprio, deve ter sido a época mais feliz e mais durável.
Enquanto os homens se contentaram com suas cabanas
rústicas, enquanto se limitaram a costurar as vestes de pele com espinhos, a
adornar-se de penas e conchas marinhas, a pintar o corpo com tintas de diversas
cores, a aperfeiçoar e embelezar os arcos e as flechas, a talhar, com a ajuda
de pedras cortantes, algumas canoas de pescadores ou alguns grosseiros
instrumentos musicais [ ... ], viveram livres, sãos, bons e felizes, tanto
quanto o podiam ser por sua natureza, e continuaram a desfrutar entre si de um
comércio independente.
Mas, desde o instante em que um homem teve precisão e
da ajuda de outrem, desde que percebeu ser conveniente para um só ter alimentos
para dois, a igualdade desapareceu, introduziu-se a propriedade, o trabalho
tornou-se necessário e as vastas florestas se mudaram em campos risonhos que
passaram a ser regados com o suor dos homens, e nos quais logo se viu a
escravidão e se viu a misé ria germinar e crescer com as colheitas.
Adaptado de, ROUSSEAU, Jean-Jacques.
Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
Pense e
responda
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I
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1. Em que consistem as duas
desigualdades entre os seres humanos para Rousseau?
2. Segundo Rousseau, como viviam os
seres humanos antes de surgirem as desigualdades sociais?
3. De que forma teve início, de
acordo com Rousseau, o processo que instalou as desigualdades sociais entre os
seres humanos?
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