segunda-feira, 23 de março de 2009

Brasil: As Raízes do Mundo do Trabalho

Brasil: As Raízes do Mundo do Trabalho
A difícil luta pela autonomia operária: notas para discussão. Curso Ecumênico de Pastoral Popular, Passo Fundo (RS), 1 a 4 de maio de 2003. Por Mário Maestri
1. Europa: As Raízes do Mundo do Trabalho
1.1. Europa: a pré-história do moderno mundo do trabalho
As origens históricas do moderno mundo do trabalho no Brasil são profundamente singulares em relação ao continente europeu, que conheceu, por primeiro na história da humanidade, a produção e a organização social capitalista e as primeiras expressões e materializações das tendências autonômicas do mundo do trabalho.
Na Europa, o moderno mundo do trabalho originou-se no bojo da produção e da ordem feudal e das lutas pela liberdade comunal. Ele assentou suas raízes nos ofícios urbanos, formados por homens livres e embalados pelas contradições entre aprendizes, oficiais e mestres.
Esse universo sócio-produtivo pré-capitalista, onde o domínio das práticas artesanais era objetivo de vida e meio de progressão social, propiciou o desenvolvimento de uma ética e uma moral mesteirais que valorizaram o trabalho produtivo e desvalorizavam o lazer improdutivo dos segmentos de baixo – mendigos, pedintes, andarilhos, etc. – e de cima – frades, nobres, etc.
A gênese e o desenvolvimento do capitalismo europeu ensejaram a radicalização das oposições internas aos ofícios. Os mestres tenderam a apartar-se da produção, transformando-se em detentores do capital. Os oficiais e os aprendizes perderam o domínio relativo dos meios de produção, transformando-se em vendedores de sua força de trabalho.
No mundo europeu, o desenvolvimento industrial acelerou-se e consolidou-se, retardou e frustou-se na consecução ou na frustração da revolução burguesa – Holanda, Inglaterra, França, Portugal, etc. Esse processo ensejou a formação de fortes éticas e morais burguesa e plebéia, antepostas às visões aristocráticas de mundo. Ele consolidou os princípios civis cidadãos, ainda que em formas restritas.
1.2. Europa: a pré-história rural do moderno mundo do trabalho
Nos séculos 19 e 20, a formação do moderno mundo do trabalho europeu consolidou-se com a crescente incorporação de produtores rurais expulsos para a cidade desde o campo onde mais comumente viviam de uma economia camponesa familiar independente ou subordinada.
Em geral, havia séculos que esses produtores rurais tinham conquistado a liberdade pessoal plena, gravando portanto os encargos feudais a terra, e não mais os homens. Eles conheciam sólidos laços familiares e societários, engendrados no contexto dos profundos vínculos com uma terra que assimilava o trabalho pretérito.
Os vínculos familiar-societários camponeses articulavam-se habitualmente em torno da comuna rural – aldeia. A estabilidade da relação com a terra; a independência produtiva absoluta ou relativa; as relações familiares e societárias; as práticas e interesses comunais, etc. ensejaram visões camponesas de mundo tendencialmente autônomas e anti-aristocráticas.
1.3. Europa: a libertação pelo trabalho
O processo da luta do mundo do trabalho europeu, sobretudo urbano, pela construção de instâncias sociais, políticas e ideológicas autonômicas realizou-se no bojo da sua transição de classe em si em classe para si, que materializava a tomada de consciência das necessidades comuns nascidas de mesma inserção no processo produtivo objetivo.
O processo subjetivo e objetivo de tomada tendencial de consciência por parte da classe operária apoiou-se nos laços societários e de identidade que os trabalhadores de origem urbana e rural mantinham e haviam mantido nos períodos históricos anteriores e nas conquistas civis e cidadãs mínimas obtidas no contexto das revoluções burguesas.
Comumente, para os mesteirais e produtores rurais, a proletarização constituiu expropriação material e espiritual em relação a realidade passadas. As romantizações literárias do mundo feudal e o movimento luditista foram expressões e reflexos culturais e sociais da perversa regressão social relativa determinada pela revolução industrial.
O processo de construção da autonomia do mundo do trabalho europeu constituiu reconstrução de experiências sociais rurais e urbanas, sobre bases materiais e espirituais superiores, materializadas pelo trabalho socializado na fábrica moderna e sugerida pela possibilidade objetiva de superação histórica das experiências passadas e presentes através da construção de sociedade socialista e comunista.
2. Brasil: As Raízes do mundo do trabalho
2.1. Brasil: A pré-história urbana do moderno mundo do trabalho
Em relação à Europa, são radicalmente singulares e superficiais as raízes do moderno mundo do trabalho brasileiro, gerado no contexto da civilização colonial e imperial luso-brasileira. O desconhecimento dessa diversidade de qualidade tem motivado profundas incompreensões, com importantes conseqüências na prática teórica e social.
Até a Revolução Abolicionista, em 1888, o modo de produção escravista colonial dominou as formas subordinadas de produção, pejando profundamente o universo social, econômico, ideológico, etc. do Brasil. Além mesmo da vigência da formação social escravista, o não-trabalho – e não o trabalho – foi expressão de elevação e superação social.
Na escravidão, a ascensão do sopé ao cume da pirâmide social dava-se através da metamorfose do trabalhador escravizado em escravizador. Mesmo que esse movimento ascendente fosse numerica e economicamente desprezível, teve importância sócio-ideológica na consolidação da sociedade escravista, ao manter via aberta aos explorados mais afortunados e empreendedores.
Escravidão urbana
No Brasil colonial e imperial, o trabalho livre foi uma singularidade. Como fora habitual na Antigüidade e em Portugal, os escravizadores ensinavam ao cativo um ofício para que fosse explorado diretamente, alugado ou mandado vender sua habilidade pelas ruas e praças das aglomerações.
Não houve transposição da organização mesteiral portuguesa para o Brasil. Ao contrário, houve transferência e radicalização da prática lusitana de utilizar a mão-de-obra escravizada nos diversos misteres artesanais. Portanto, esse último hábito social, subordinado em Portugal, assumiu caráter dominante no Brasil.
Até fins do Império, nos centros urbanos, os mestres compravam trabalhadores escravizados, ensinavam-lhes os ofícios, viviam do esforço servil, apartando-se crescentemente do trabalho produtivo. O número de cativos e o grau de estranhamento ao trabalho determinavam a maior ou menor dignidade social dos mestres.
O trabalhador escravizado era comumente alugado a privado ou ao Estado pelo escravizador que recebia o valor total do arrendamento do cativo de aluguel. Esse trabalhador era alimentado por seu senhor e, menos comumente, pelo arrendatário, desinteressado na manutenção da sua força vital.
Romantismo arbitrário
O cativo ganhador locomovia-se livremente pelas ruas das aglomerações oferecendo produtos e serviços, sob a condição de pagar um ganho fixo – diário, semanal, mensal – ao escravizador. Ele investia o obtido além do ganho em alimentação, vestuário, pagamento de um alojamento, formação de um pecúlio, etc.
A historiografia revisionista romantizou e extrapolou as possibilidades ensejadas por essa forma de trabalho servil, propondo-lhe um significado autonômico e possibilidade de superação do status escravista que jamais possuiu. Chegou-se a afirmar que constituiria uma brecha urbana na ordem escravista.
Relativamente poucos ganhadores obtiveram a alforria através da compra da liberdade. Em geral, quando isso ocorria, dava-se devido a uma singular habilidade produtiva e parcimônia, após décadas de trabalho e poupança. A compra da alforria ensejava descapitalização do ganhador, quando declinava sua capacidade produtiva. Ela permitia que o escravizador trocasse um produtor usado por um novo.
A imensa maioria dos cativos ganhadores, de aluguel ou explorados diretamente pelos escravizadores viveu e morreu sob as duras condições escravistas da vida, em contexto que o trabalho era objetivação da exploração e não de sua superação relativa.
2.1. Brasil: A pré-história rural do moderno mundo do trabalho
No Brasil escravista, praticamente de 1532 a 1888, o mundo rural dominou em forma substantiva o mundo urbano, social e economicamente subordinado. Mesmo no século 18, durante o ciclo mineiro, a fazenda monocultura escravista subordinou fortemente o universo sócio-produtivo escravista colonial.
No quinhentos, o litoral brasílico era habitado sobretudo por comunidades aledães tupi-guaranis organizadas em torno de uma horticultura itinerante de plantação-enxertia que ensejava forte autonomia entre as aldeias e frágeis raízes dos horticultoeres com as aldeias – inexistência de celeiros; frágeis raízes com território utilizado extensivamente, etc.
A escravização açucareira dizimou a sociedade nativa e gerou comunidades de produtores destribalizados que, em contato com a sociedade oficial, retomaram, em geral e isoladamente, práticas produtivas tradicionais. As formas caboclas de produção ensejadas por esse processo geravam frágeis laços societários e com uma terra que não constituía locus coagulador do trabalho pretérito.
Africanos escravizados
A partir dos anos 1570, a substituição da dominância da escravidão americana pela africana introduziu forçosamente no Brasil de três a cinco milhões de africanos arrancados do continente negro. Na África, esses trabalhadores escravizados haviam sido pastores, artífices e sobretudo camponeses aldeões livres. O tráfico constituiu a maior transferência forçada de trabalhadores da história da humanidade.
A economia monocultura exportadora exigia que os produtores escravizados conhecessem formas intensas de trabalho compulsório, organizado em equipe, a fim de facilitar a feitorização do trabalho. A organização escravista ensejava frágeis laços societários, familiares e com a terra trabalhada por parte dos produtores feitorizados.
No Brasil, a produção servil dominical autônoma de meios de subsistência em parcelas cedidas pelos escravizadores foi fenômeno singular que tendia a dissolver-se quando da expansão da produção escravista mercantil. O caráter singular e a subordinação mercantil determinaram a inexistência do "protocampesinato" proposto pelos defensores da brecha camponesa. Fenômeno que se expressou na luta dos cativos pela liberdade e não pela terra.
2.3. Brasil: a libertação do trabalho
O principal objetivo das massas escravizadas urbanas e rurais foi a libertação do trabalho feitorizado, vetor e símbolo da submissão escravista. A resistência ao trabalho alienado e a fuga foram importantes formas de luta servis. Uma significativa parcela da população escravizada viveu permanentemente em fuga, nas cidades e nos campos.
A negação consciente e inconsciente do trabalho alienado foi uma das principais formas de resistência do trabalhador escravizado. Sem referências alternativas, as visões de mundo dessas comunidades foram penetradas pela ideologia dominante. A improdutividade aristocratizante foi paradigma de toda a sociedade escravista.
A escravização do produtor direto nas cidades e no campo pressupunha sua feitorização, minoração cultural e anulação civil. Os cativos lutaram para construir visões de mundo e laços familiares e societários que caracterizaram-se pela fragilidade e precariedade, já que enquadrados por relações sociais despóticas e pelo baixo desenvolvimento das forças produtivas, num contexto de escassa autonomia produtiva e societária.
No universo urbano e rural, o trabalho escravizado foi sempre visto como vetor de alienação e não de emancipação. Poucos anos após o fim da escravidão, o intelectual negro Manuel Querino procurou pioneiramente resgatar o caráter progressivo e criativo do esforço do trabalhador escravizado na construção da sociedade brasileira.
3. Formação do Moderno Operariado Urbano
O processo de industrialização do Brasil iniciou-se em fins do século 19, em forma profundamente regionalizada, sobretudo através da exploração da força de trabalho européia imigrada especializada e semi-especializada e de trabalhadores urbanos de origem nacional não-especializados. A produção fabril nacional iniciou-se quando ainda dominavam as relações escravistas de produção, com trabalhadores escravizados e livres. Não raro, estes últimos haviam sido ou descendiam de trabalhadores escravizados.
Sobretudo após a fundação das primeiras organizações operárias, os trabalhadores imigrados transpuseram práticas, expectativas e comportamentos do mundo do trabalho europeu para as regiões em processo de industrialização, socializando relativamente suas experiências com os trabalhadores nacionais, apesar das diversidades nacionais, de língua, etc. Esse processo teve como base e foi impulsionado pela mesma inserção sócio-produtiva.
A aceleração do processo de industrialização ocorrida durante a Grande Guerra e após a crise mundial de 1929 – "industrialização por substituição de importações" – ensejou a incorporação à produção industrial, primeiro dos trabalhadores nacionais urbanos desempregados, a seguir de produtores chegados do meio rural.
Os trabalhadoras urbanos e rurais nacionais incorporados à produção tinham vivido inseridos em forma mais ou menos diretas no universo escravista. Eram ex-cativos, libertos, ventre-livres, caboclos, etc. Quanto muito, haviam conhecido imperfeitamente a propriedade e o domínio da terra, no contexto da rústica sociedade latifundiária nacional, onde a aldeia camponesa quase inexistia.
Excepção colonial
A distribuição ou a venda financiada de pequenas glebas agrícolas a alemães, italianos, poloneses, etc. imigrados ensejou produção economia camponesa indipendente que, por décadas, manteve essas comunidades à margem do mercado de trabalho livre urbano, já que detinham os fatores de produção necessários à produção de meios de subsistência.
Em forma desigual, os segmentos sociais urbanos e rurais proletarizados originavam-se em universos societários duramente subalternizados e conheciam realidades culturais, familiares, societárias, etc. muito frágeis. Eram objeto da discriminação racial e lingüística, no contexto de sociedade que, realizando transição autoritária para a ordem burguesa, mantinha as comunidades populares à margem dos direitos cidadãos mínimos.
Submetidos historicamente à situação de sub-consumo, com escassa experiência no mercado livre de trabalho, a proletarização significava para os segmentos sociais urbanos e rurais nacionais incorporados à ordem industrial, mesmo em forma precária e despótica, progressão social e econômica absoluta e relativa.
A proletarização industrial raramente constituía decadência em relação a um passado de sub-consumo e de relações de trabalho despóticas que, por outro lado, punha à disposição das novas classes proletárias uma muito limitada herança de lutas e mobilizações comunitárias e societárias.
Passado ingrato
Até certo ponto, no Brasil, para multidões de trabalhadores, em relação ao passado, a proletarização constituiu uma espécie de ponto de partida zero. Ou seja, o início de experiências de socialização por parte de comunidades tendencialmente atomizadas no passado pela ordem escravista e pela sociedade oligáquico-latifundiária.
Nesse sentido, ao contrário da Europa, a fábrica não foi o locus de restauração e superação de cultura e valores societários pretéritos, mas o espaço de sua formação. Ao menos no que se refere às populações de origem nacional, não efetuou a ressocialização industrial de comunidade urbana e rural de produtores portadoras de sólidos valores e experiências societárias.
Nesse contexto, a fábrica produziu e produz a organização de consciência societária sempre questionada, diluída e fragilizada pelo imenso exército de reserva de origem urbano e rural. Exército que tem as determinações anômicas impostas no passado pelo escravismo e latifúndio oligárqucio aprofundadas, no presente, pelas impulsões políticas, social e ideológica dissociativas do moderno modo de produção capitalista.
4. Construi o Autonomia do Mundo do Trabalho
No Brasil, a construção do futuro parece exigir depuração do mundo do trabalho das impregnações políticas, ideológica, social, etc. estranhas a ele. Processo viabilizado com o fortalecimento, difusão e universalização dos seus valores – plebeísmo; racionalismo; associativismo; coletivismo, etc. – no seio das classes trabalhadoras através da organização autonômica e contraditória dos trabalhadores ao capital – partidos políticos; associações sindicais, profissionais, comunitárias, escolares; mídia; sociedades culturais, esportivas, etc.
Constitui momento fundamental desse processo a extensão dos valores, das práticas e das formas de organização do mundo do trabalho às comunidades da cidade e dos campos marginalizadas pela produção capitalista, na luta pela destruição, anulação e mitigação das supervivências econômicas, políticas, ideológicas, etc. pré-modernas e pré-capitalistas – desvalorização do trabalho; latifúndio; elitismo; racismo; irracionalismo; individualismo, etc.
Processo que exige, na luta pela consecução de seus objetivos estratégicos, a incessante mobilização das classes trabalhadoras e populares pela obtenção dos direitos básicos elementares ao salário, à educação, ao lazer, etc., num aqui e agora da vida social quotidiana que rompa radicalmente com o tradicional e permanente reconhecimento retórico desses direitos e a postergação de sua concessão para um futuro que jamais se materializa.
sobre o autor
Mário Maestri, 55, doutor pela UCL, Bélgica, professor do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UPF. [maestri@via-rs.net]

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